Inconstitucionalidade da Exigência de Pagamento de Crédito Tributário como Forma de Condicionar a Autorização de Confecção de Documentos Fiscais - Palavra Final do Supremo Tribunal Federal
Pedro Melchior de Mélo Barros*
Durante muito tempo, questionou-se a possibilidade de poder o Fisco condicionar a concessão ou manutenção de inscrição estadual, ou, ainda, a concessão de Autorização para a Impressão de Documentos Fiscais - AIDF, ao pagamento de dívidas tributárias pendentes.
Historicamente, observamos que o falecido Presidente brasileiro, GETÚLIO VARGAS, tido como o ¨pai dos trabalhadores¨, já afirmava que ¨o trabalho é o maior fator de elevação da dignidade humana¨ (in ¨Jornal do Comércio¨, Porto Alegre, RS, edição de 16 a 18/11/01, p. 2), enquanto no voto a seguir, de lavra do Relator GONÇALVES DE OLIVEIRA, proferido no longínquo 14/02/68, no RE nº 63047/SP (DJU de 28-06-68, Tribunal Pleno), vê-se uma regra basilar nesse sentido:
"O Executivo há que estimular a produção e não fechar os estabelecimentos que produzam, sob a alegação de que os impostos são devidos".
É preciso que se tenha consciência de que, hoje, mais do que nunca, o Estado depende do seu contribuinte, como este depende do seu cliente. A existência do contribuinte é certa, mas, a do cliente não. Este depende de poder aquisitivo, e o poder aquisitivo depende diretamente do estímulo que o governo dá à iniciativa privada e à produção.
A prosseguir a desenfreada fúria fiscal, de pretender condicionar o exercício de atividades comerciais a exigências absurdas e descabidas, e de responsabilizar, indiscriminadamente, o administrador empresarial, o Estado corre o irreversível risco de liquidar com a iniciativa privada, e, com ela, o seu próprio contribuinte.
Negar o uso de documentos é impedir o exercício do comércio. Com isso o Erário nada ganha, nada lucra. De outro lado, propiciando a continuidade das atividades da empresa surge a expectativa de cobrar os créditos já vencidos.
É óbvio, mera expectativa - mas bem melhor do que a certeza de que, impedindo o comércio, nenhum expectativa haverá. Então, porque negar a utilização dos documentos, se disso nenhum proveito resultará para o credor tributário? Todo ato administrativo deve ter sentido finalístico, em direção a um proveito determinado. Qual o proveito dessa negativa? Absolutamente nenhum.
Não se está, com tudo isso, por apoiar a inadimplência tributária, mas a evidenciar que o caminho mais adequado a ser trilhado pelo Estado é, não impedir o exercício da atividade empresarial, mas orientar melhor os seus contribuintes e aumentar o cerco na fiscalização do tributo, e, especialmente, diligenciar para que a cobrança do seu crédito tributário seja imediata, - sempre que for esta a razão da negativa de concessão de autorização para a impressão de documentos fiscais.
Com o passar do tempo as Cortes Estaduais e o Superior Tribunal de Justiça passaram a condenar essa prática do Fisco. Na sessão realizada no dia 17/03/2005, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, vencido o Ministro Eros Grau, acompanhou o voto o Ministro Marco Aurélio declarando a inconstitucionalidade do inciso IV do artigo 19 do Decreto nº 3.017/89, do Estado de Santa Catarina, o qual condicionava a autorização de confecção de notas à inexistência de débitos tributário. Destaca-se do voto do Eminente Relator:
"Nota-se a tomada de empréstimo de meio coercitivo, objetivando a satisfação de débito tributário. Em síntese, a legislação local submete o contribuinte à exceção de emitir notas fiscais individualizadas, quando em débito para com o fisco. Entendo conflitante com a Carta da República o procedimento adotado. A Fazenda há de procurar o Judiciário visando à cobrança, via executivo fiscal, do que devido, mostrando-se impertinente recorrer a métodos que acabem inviabilizando a própria atividade econômica, como é o relativo à proibição de as empresas em débito, no tocante a obrigações principal e acessórias, vir a emitir documentos considerados como incluídos no gênero fiscal. Imagine-se o que implica, a cada negócio jurídico, ter-se de requerer à repartição fazendária competente a emissão de nota fiscal avulsa. A regência local da matéria abrange previsão incompatível com a ordem natural das coisas, com o princípio insculpido no parágrafo único do artigo 170 da Carta da República, segundo o qual é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica. Repita-se: na dinâmica da própria atividade desenvolvida, fica inviabilizada a atuação, se aquele que a implementa necessita, caso a caso, como é o da compra de passagens, de recorrer ao fisco, para a obtenção de nota fiscal avulsa. Em Direito, o meio justifica o fim, mas não este, aquele. Recorra a Fazenda aos meios adequados à liquidação dos débitos que os contribuintes tenham, abandonando a prática de fazer justiça pelas próprias mãos, como acaba por ocorrer, levando a empresa ao caos, quando inviabilizada a confecção de blocos de notas fiscais." (STF. RE 413.782/SC. Rel. Min. Marco Aurélio. Plenário. Julgado em 17/03/2005. Acórdão pendente de publicação)
Ainda sobre restrições administrativas, asseverou com maestria o Ministro Celso de Mello:
"Em suma: a prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental, constitucionalmente assegurados ao contribuinte, pois este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos por este editados." (STF. RE 402/769-1/RS. Min. Celso de Mello. DJU: 06/04/2005)
Vitória aos contribuintes. Esses precedentes refletem a sábia orientação da Suprema Corte em reconhecer e assegurar a garantia do livre exercício do trabalho, ofício ou profissão - inciso XIII do artigo 5º da Carta da República - e de qualquer atividade econômica, nos termos do parágrafo único do artigo 170 da Constituição Federal.
Elaborado em 04/2005
Pedro Melchior de Mélo Barros*